For a long time now I have tried simply to write the best I can. Sometimes I have good luck and write better than I can. (Ernest Hemingway)

Thursday, April 7, 2011

Sobre ficção científica e as Muralhas de Adriano


Nos filmes da série “Mad Max”, Mel Gibson vaga por um mundo pós-apocalíptico. As estradas são perigosas e boa parte da humanidade se encastela em pequenas comunidades muradas, apavorada com os bárbaros que aterrorizam as estradas. As condições de vida são precárias e praticamente todos os confortos que temos hoje desapareceram. Em Waterworld, de 1995, Kevin Costner vive numa terra também devastada por uma hecatombe. Desta vez, as calotas polares derreteram e a maior parte da terra está coberta de água. Novamente, todos os confortos modernos desapareceram e a humanidade regrediu alguns séculos, sobrevivendo a duras penas enquanto é aterrorizada por bandos que voltaram à barbárie. Dois anos depois, o mesmo Kevin Costner voltaria a ser a esperança de um mundo semi-destruído por um apocalipse nuclear em ”O Carteiro” (The Postman). Mais uma vez, as pessoas de bem vivem em cidadelas, tentando reconstruir um mínimo de conforto, enquanto, do lado de fora dos muros, bárbaros controlam os caminhos. Em “O Livro de Eli” (The Book of Eli) de 2010, Denzel Washington cruza uma América pós-apocalíptica, mais uma vez atormentada por malfeitores, enquanto protege um livro que é a última esperança de reconstruir a civilização perdida. “Eu Sou a Lenda” (I am Legend), de 2007, repete basicamente a mesma história, de um modo um pouco mais metafórico. Mais uma vez, a civilização como a conhecemos foi destruída, só que os bárbaros que ameaçam Will Smith quando ele não está trancado em casa, são pessoas que uma praga transformou em monstros assassinos. No fim do filme descobrimos que uns poucos sobreviventes tentam reconstruir a civilização a partir de uma fortaleza onde vivem, em Vermont.
É curioso que tantos filmes de ficção científica contem a estória de uma humanidade que regride a um estágio anterior de civilização. Até certo ponto, a idéia toda é contra-intuitiva. Temos uma noção de “progresso” e sua inevitabilidade que é confirmada por quase tudo que estudamos em História na escola. A humanidade “anda para a frente”: os níveis de conforto e bem estar estão continuamente (ainda que, as vezes, lentamente) aumentando e vivemos hoje materialmente melhor que nossos avós viveram (e eles podem dizer o mesmo em relação aos avós deles). Claro que a poluição, os engarrafamentos, o risco de câncer de pele e a escravidão do celular podem nos fazer questionar até onde o progresso nos faz realmente mais felizes, mas não é disso que se trata aqui. Que extrair um dente com anestesia é melhor que sem, acho que ninguém contesta...  A marcha inexorável  para a frente que observamos na nossa existência e na de nossos pais e avós é difícil de conciliar com essa obsessão da ficção científica por um mundo que “andou para trás”.
Em 2005 eu fiz uma viagem de carro pelo interior da Inglaterra com Kátia e Marina. Saímos de Londres para o norte, fomos até Edinburgo, na Escócia, e voltamos pelo litoral leste. No caminho, passamos pelas ruínas da Muralha de Adriano, um ponto turístico bastante conhecido. Todo mundo sabe que os romanos, partindo do centro da Itália, construíram um Império que se estendeu para leste até o Oriente Médio e para oeste até a Península Ibérica. Invadiram a Inglaterra e dominaram sua metade inferior (Londres é uma cidade romana). Cansado de lutar com os bárbaros do norte (os ancestrais dos atuais escoceses), o imperador Adriano construiu uma muralha que protegia a fronteira norte do império.
Não sobrou tanta coisa assim da muralha (muitas pedras foram retiradas quando fizeram o cercamento das terras para delimitar o pasto das ovelhas,  que deu origem àqueles lindos murinhos de pedra empilhada que se vêem por toda a Inglaterra). Ainda assim, o lugar vale a visita. O ponto turístico, propriamente dito, é o lugar onde um dia existiu uma base militar para a guarnição que guardava a muralha. Diagramas pintandos em placas de acrílico mostram como eram os alojamentos, os banheiros, os arsenais, as torres de vigia. Apesar de instalações militares não serem, nem hoje em dia, paradigmas do conforto, as construções tinham muitas das amenidades da arquitetura romana: os alojamentos tinham calefação (sob o piso de madeira, dutos de pedra conduziam o ar quente produzido numa fornalha anexa) e  os banheiros tinham água corrente e esgoto (um riacho foi desviado para fornecer água para o banho e correr sob o banheiro, levando embora os dejetos). Estradas calçadas com pedra permitiam os carros de transporte chegarem ao quartel mesmo na estação de chuvas. As ordens superiores chegavam ao comandante da guarnição pelo correio regular.  Um comandante romano sabia ler, é claro, e a escrita, as estradas e os correios permitiram que um Império imenso fosse controlado a partir de Roma, a uma distância percorrida então em várias semanas de viagem.
Um soldado romano tinha uma vida frugal, mas, no auge do Império, um romano rico vivia bem. O bom desenho arquitetônico fazia com que sua casa fosse fresca no verão e a calefação a aquecia no inverno. O aqueduto levava água à cidade e a rede urbana a levava até sua casa. Ele podia se dar ao luxo de banhos de banheira! O comércio com as colônias, os portos, as redes de estradas seguras levavam iguarias dos confins do império para a sua mesa. A moeda era usada em toda a parte, e permitia a ele adquirir todos os inúmeros produtos e serviços, disponíveis numa cidade romana, a uma curta caminhada de sua casa.
Nesta mesma viagem, nós visitamos muitos castelos medievais, construídos bem depois das Muralhas de Adriano. Nenhum tinha canalização de esgoto. Nenhum tinha água corrente.  Nenhum tinha aquecimento. O rico e poderoso senhor feudal que vivia nesse castelo extremamente desconfortável era analfabeto (Carlos Magno, rei da França, era analfabeto!). Ele comia muito mal. Quase não havia comércio para além dos muros. Todos todos os caminhos (não dava mais para chamá-los mais de estradas) eram perigosíssimos e ele tinha de se contentar com o que era produzido no seu feudo. Pão, nabo, couve, carne de caça, não muito mais que isso. Sua casa era fria e malcheirosa. Ele vivia isolado do resto do mundo. Não havia mais correio. Não havia mais jornal. Não haviam mais trabalho assalariado. A ameaça dos bárbaros o obrigava a viver cercado por muralhas. Em comparação ao rico romano, o rico medieval vivia num estágio muito inferior de civilização.
O contraste das ruinas romanas com os castelos medievais me deu uma pista do porque tantos filmes falam do fim da civilização e da volta à barbárie: porque a humanidade já viveu esta experiência, uma vez. O fim do Império Romano e a regressão do modo de viver aos padrões da Alta Idade Média são uma experiência bem parecida com a que vemos nos filmes de ficção científica pós-apocalípticos. Roma era a civilização. A Alta Idade Média é o mundo dos últimos filmes de Mad Max.
Jung forjou o conceito de “inconsciente coletivo”: uma camada de inconsciente que não vem da experiência pessoal, mas é herdada da humanidade. É claro que Jung nunca disse isso que vou dizer, mas esse fascínio pelo tema da regressão à barbárie, demonstrada pelo sucesso dos filmes pós-apocalípticos parece uma manifestação do inconsciente coletivo. A Humanidade ficou tão traumatizada com a experiência do “fim da civilização” que nem os muitos séculos de progresso quase ininterrupto que o seguiram nos fizeram superar o choque.
À todas as pessoas de bem que vivem apavoradas nos medonhos mundos de Mad Max, do Carteiro ou de Eli, uma palavra de consolo: não será assim para sempre. Um dia, voltarão a existir livros. Um dia, as estradas serão seguras de novo. Um dia, haverá lei, novamente. E seus descendentes reclamarão da poluição e do engarrafamento...

Thursday, January 27, 2011

Trilogia Feminina (2) - Daphne

Nada é mais frágil e perecível que uma estória. Como sucessão de fatos, deixa de existir no momento mesmo em que acontece. Uma vez vivida, o que é uma estória senão sua narrativa? Sua sobrevivência futura está restrita aos registros e à memória de seus personagens e testemunhas. Uma estória que ninguém conhece é como uma estória que nunca existiu.

Desculpem a digressão. Tenho andado assim, imerso em pensamentos e obcecado com minhas memórias. A notícia ruim que recebi dias atrás pode explicar essa cisma. Deve ser  natural na minha situação, eu acho.

O que me angustia é a possibilidade que a estória que eu e Daphne construímos desapareça para sempre. Quase ninguém a compartilhou conosco. Sempre fomos muito discretos. Quando não existir mais em minha memória será como se não tivesse acontecido. As poucas testemunhas (um ou outro garçom, arrumadeira de hotel ou motorista de taxi) não poderão dizer muito de nós. Daí a urgência do meu projeto. Não sei quanto tempo ainda tenho. Meu médico não soube precisar.

Daphne era linda quando a conheci. Tinha trinta e três anos, oito a mais que eu. Morena, sobrancelhas grossas sobre olhos negros, lábios carnudos, mas não este excesso que se vê hoje nas ruas, seios pequenos, pernas bonitas. Trabalhávamos no mesmo lugar. Minha carreira estava só começando, mas ela já era gerente. Mais velha, numa posição mais alta que a minha, ela estava tão fora do meu alcance que eu nem fantasiava alguma coisa com ela. Mas não podia deixar de notá-la.

A primeira vez que nos falamos foi numa festa que comemorava os dez anos de fundação da empresa em que trabalhávamos. Eu não devia ter mais de três meses lá, e não conhecia muita gente. Já estava no terceiro uísque e ainda não conseguira engrenar uma conversa com ninguém. Ela parou do meu lado e perguntou: “Está gostando da festa?”. A voz era bonita e o sorriso mais ainda. “Está boa, né?”, respondi. “E de trabalhar aqui? Você está aqui há pouco tempo, não é mesmo?”.

Contei minhas impressões sobre a empresa e sobre as pessoas. Ela me perguntou o que eu fazia antes, e o que eu tinha estudado na faculdade. Ela era gentil, engraçada e falava muito. Não sei se era sempre assim ou era efeito das caipirinhas que ela tomava. Fazia calor e ela levantava o cabelo com as mãos de tempos em tempos, afastando os do pescoço. Cada vez que fazia esse gesto, o cheiro do seu perfume e a visão da sua nuca faziam meu coração disparar. Tocava “Como uma Onda”, um bolero do Lulu Santos que fazia sucesso na época. Ela pegou a minha mão e me puxou para a pista de dança. Os dedos da minha mão esquerda entrelaçavam os dedos da mão direita dela, enquanto dançávamos. Minha mão direita tocava o ponto onde começava (ou terminava) o generoso decote das suas costas, de modo que meu polegar e indicador roçavam sua pele nua. Curiosamente, ao invés de abraçar minhas costas com sua mão esquerda, ela a pousou suavemente sobre o meu peito, no estreito espaço entre nossos corpos. Para quem nos observasse, este gesto  poderia ser interpretado como uma tentativa de impor distância.  Mas eu sabia que não erra essa a intenção.Sentia a maciez e o calor do seu toque no meu peito e achei o gesto deliciosamente carinhoso e íntimo.

Passou pela minha cabeça que ela talvez estivesse interessada em mim. Idéia que descartei imediatamente, porque só podia ser maluquice. Seja como for, era delicioso rodar pela pista com aquela mulher linda, cheirosa e com um decote destes nas costas, e ainda fantasiar que ela estava flertando comigo.
Quando a música acabou ela disse que queria fumar e me chamou para o jardim. Só nós estávamos lá. Era bom respirar o ar fresco da noite e estar longe da música alta. Meu ouvido continuava zumbindo e eu tive certeza que tinha exagerado na bebida.
Não lembro se ela chegou a fumar ou não. Também não sei dizer se fui eu quem a beijei ou o contrário. Provavelmente o contrário. Lembro que nos beijamos, e que foi muito bom, e que eu mal podia acreditar que aquilo estava acontecendo. Como num filme, minha memória faz um “fade out” neste ponto e um “fade in” no meu apartamento, de modo que cabe ao leitor imaginar como saímos da festa e se nos despedimos ou não dos outros.
Lembro de vê-la nua e pensar que era a mulher mais bonita com quem tinha ido para a cama. Lembro bem do cheiro do corpo dela, porque voltei a senti-lo muitas vezes sempre procurando a emoção da primeira vez. Como a primeira viagem de heroína, aquele momento era irrecuperável. Lembro que ela fazia amor de um jeito desesperado, como um ex-presidiário que se despede de anos de abstinência. Quando finalmente relaxamos todo o álcool que eu tinha consumido fez efeito e eu dormi instantaneamente. Acordei com ela já vestida, me pedindo para levá-la até a porta. Meu olho pesava e eu não tinha a menor vontade de levantar. “Você não prefere dormir aqui?”, eu disse. “Tá louco? Eu sou casada.”

Na verdade, o casamento dela estava desmoronando. O marido nem encostava mais nela, mas, por alguma razão, também não se separava. Ela juntava coragem para tomar a iniciativa. Nos meses que se seguiram à festa, saímos juntos muitas vezes. Aqueles dias me parecem, hoje, uma aventura maravilhosa e assustadora.  Eu morria de medo de um escândalo. De um dia descer do escritório e encontrar o marido dela me esperando. Das pessoas do trabalho descobrirem sobre nós. Tentei acabar com aquilo algumas vezes, mas não adiantava. Ela estava carente e desamparada e, se fosse preciso, implorava para eu sair com ela. E eu também não resistia à vontade de tê-la de novo.

Quando o marido aceitou a separação, eu já tinha desistido de terminar com ela há tempos. Pelo contrário, estava completamente apaixonado e tudo o que eu queria era que ela estivesse livre e pudéssemos parar de nos esconder. Queria poder ir a um restaurante, ao cinema ou passear de mãos dadas como todo mundo.

Aí aconteceu o absurdo. Ela faltou o trabalho uma manhã para ir à primeira audiência da separação. Quando chegou no escritório, disse que queria almoçar comigo. O inusitado do convite e o jeito com que ela falou me deram um pressentimento ruim. Raramente almoçávamos juntos. Difícil achar um lugar para almoçar no centro do Rio onde não se corra o risco de encontrar um conhecido.

No restaurante ela me contou que  o juiz tinha lhe perguntado se ela tinha certeza absoluta de que não havia possibilidade de reconciliação e que a pergunta lhe deixara realmente insegura. Tinha mesmo feito todo o possível? Não havia mais saída para o casamento dela? Apesar das dúvidas, ela respondeu que não havia possibilidade de reconciliação. Acredito que deve ter sido muito pouco convincente porque o juiz disse então que eles pensassem melhor e tentassem mais um pouco. Marcou outra audiência para noventa dias depois. Para mim aquilo tudo soava surreal, mas ela continuava falando interminavelmente, talvez para esconder o constrangimento da situação. Que eu tinha que entender... Que um casamento é um projeto no qual se investe muito... Quanta energia ela tinha colocado naquilo... Quantos sonhos... Que eu não podia imaginar como é frustrante deixar fracassar uma coisa na qual se acreditava tanto... E, além do mais havia as famílias... Quanta gente sofreria por isso... Eu tinha de entender... Ela precisava tentar mais um pouco... E, nesse meio tempo, não deveríamos nos ver.

Não, eu não entendia. Tudo aquilo parecia sem pé nem cabeça. O que alguns meses poderiam mudar? O casamento dela já tinha acabado há muito tempo. Não era isso que ela me dizia? Era tudo dolorosamente absurdo. O orgulho ferido e o nó na garganta que me fazia achar que eu poderia chorar a qualquer momento me impediram de implorar a ela para mudar de idéia, que era o que eu realmente queria fazer. Ao invés disso, levantei em silêncio e fui embora sem almoçar. Nem voltei para o escritório. Peguei meu carro, dirigi até o Arpoador, subi na pedra e caminhei até a ponta onde permaneci muito tempo, sentado, tentando fazer algum sentido dos acontecimentos.

Era doloroso vê-la todos os dias no escritório. Os três meses passaram, ela não me procurou, mas eu sabia que ela continuava casada. Alguns meses depois, quando a notícia da gravidez dela se espalhou eu percebi que não poderia mais ficar ali. Aceitei o convite de um amigo que tinha me oferecido sociedade numa oficina mecânica em Belo Horizonte e fui embora sem me despedir de Daphne.

***

Quase consegui esquecê-la. Segui a vida. Casei-me com uma mineira que conheci na academia que eu freqüentava. O casamento durou só dois anos. Sobraram mágoas e, felizmente, nenhum filho. A esse casamento se seguiram muitos relacionamentos, com mulheres de todos os tipos. Uns mais, outros menos bem sucedidos,  mas nenhum muito longo. Chegou um ponto em que a lembrança de Daphne não me incomodava nem entristecia. Gostava de pensar nela como ‘a única das minhas ex-namoradas de quem eu sentia saudade’.

Depois de dez anos em Minas, apareceu uma oportunidade de trabalho no Rio e eu a aceitei só para mudar a vida. A volta ao Rio foi frustrante. Esperava voltar à vida que tinha lá, quando jovem, mas isso não aconteceu. Nunca tive muitos amigos e a distância prolongada me separou dos poucos que tinha na cidade. Do Rio da minha juventude, praticamente só tinham sobrado a praia e uma descontração no vestir que não se vê em Belo Horizonte. Ao menos gosto das duas coisas.

Entrei numa rotina, não desprovida de prazeres, de caminhar na praia antes do trabalho, jantar fora duas ou três vezes por semana, na companhia de um bom livro e cozinhar para minhas mulheres – relacionamentos cada vez mais curtos, porque logo elas percebiam que eu não tinha a intenção de casar e se afastavam.

Um dia estava escolhendo um vinho num supermercado do Leblon quando vi Daphne. Ela se aproximava, empurrando um carrinho cheio de compras. Não tinha me visto, ainda. O tempo não a tinha maltratado. Eram visíveis as ruguinhas nos cantos dos olhos e a pele não parecia ter o mesmo viço, mas continuava bonita. Perceber nela o envelhecimento, e a diferença de idade entre ela e minhas namoradas de então, não me incomodou. Ao contrário, me encheu de ternura por ela.

O impacto do reencontro deve ter sido tão forte nela quanto em mim. Ficamos ali, na seção de vinhos, contando desajeitadamente nossas vidas nos últimos dez anos. Meu coração batia rápido como o de um adolescente apaixonado. Ela, como sempre, tinha mais controle das situações que eu. Vendo-me ali, sem cestinha nem carrinho, com uma garrafa de vinho na mão, perguntou: “Você mora por aqui?”. Terminamos a tarde na minha cama, tirando o atraso de dez anos. Nem sequer tomamos o vinho.

De certa forma, retomamos nossa estória onde tinha sido interrompida. Tornamo-nos amantes, novamente. Nossos encontros eram furtivos. Em geral ela ia ao meu apartamento. Raríssimas vezes saíamos à rua juntos. Fazíamos juras de amor. Ela me dizia que sonhava com o dia em que viveríamos juntos, mas que isso não aconteceria tão cedo. Seu filho tinha síndrome de Down. Tinha só nove anos e precisava muito dela. Era muito apegado ao pai e sofreria enormemente com a separação. Ele tinha, é claro, problemas de aprendizagem, e seu progresso dependia de uma estabilidade emocional que ela não colocaria em risco. Ela, simplesmente, não tinha coragem.

Àquela altura da vida, eu já não tinha mais medo de escândalo, nem do marido dela. Nosso arranjo, a princípio, me pareceu conveniente. Ter uma mulher apaixonada, que procure você apenas quando quer sexo e, depois de satisfeita, volte para casa é o sonho de consumo de muitos homens.  Na verdade não é tão bom assim. Muitas vezes gostaria de estar com ela e não era possível. Às vezes nossos programas eram cancelados na última hora. Mas nossos momentos juntos eram tão bons que compensavam as ausências.

Embora não tivéssemos nenhum compromisso de fidelidade mútua – que, de mais a mais, ela não poderia exigir, em pouco tempo descobri que nossa situação era difícil de conciliar com qualquer outro relacionamento. Durante o primeiro ano depois da nossa volta, ainda mantive uns casinhos paralelos. Mas eu nunca podia prever quando Daphne poderia ficar comigo e queria estar disponível quando isso acontecesse. Pelo resto de nossas vidas juntos, nunca mais fiz amor com nenhuma outra mulher que não Daphne. E isso significou muitos natais e passagens de ano sozinho.

Nem tudo é renuncia. Tivemos momentos maravilhosos. Uma semana inesquecível numa pequena hospedagem em Vancouver (ela supostamente estava num evento de trabalho em Nova Iorque) ou um fim de tarde em que ousamos ir juntos até a Prainha e ela deitou a cabeça no meu colo após o por do sol e ficamos olhando o céu escurecer e as primeiras estrelas aparecerem, meus dedos nos cabelos dela. Até sermos expulsos pelos mosquitos e corrermos para o carro rindo como dois adolescentes. Estas lembranças ainda fazem minha garganta apertar.

Já não ansiava que o filho dela crescesse e ela se separasse. Esperava pacientemente. Aproveitava cada momento que tínhamos. E sonhava com um futuro ainda melhor que o presente. Fantasiava que, na aposentadoria, moraríamos juntos em uma casinha na praia. Tudo mudou quando um estúpido acidente aéreo levou a única mulher que verdadeiramente amei.

A notícia de sua morte foi terrível. Passei uma fase ruim, em que a vida não me parecia valer a pena. Fase (mal) suportada a base de anti-depressivos e muito, muito álcool. Não sei o quanto isso pode ter contribuído para minha atual situação. A gente não sabe o que um cérebro em sofrimento é capaz de produzir. O fato é que minha doença é pouco comum na minha idade. Menos de cinco por cento das pessoas atingidas tem menos de sessenta e cinco anos. É o meu caso.

Não tenho medo de morrer. Não há razão para supor que vou morrer logo. Pelo menos isso foi o que me disse o médico. Alzheimer não mata rapidamente. O que temo é o esquecimento e não saber quando ele virá. Não consigo suportar a idéia de que nada sobrará da minha estória de amor com Daphne. E como um moribundo revela, no leito de morte, a confissão que não pode levar para o túmulo, eu conto a você a estória de amor que não quero ver sumir, não nas trevas da morte, mas na neblina leitosa do esquecimento.

Monday, January 10, 2011

A menina que amava a Minnie

Era uma vez uma menina que cochichava no ouvido da Minnie.
De quem tantas vezes fui ator coadjuvante (quem sabe o nome do príncipe da Branca de Neve ou da Bela Adormecida?).
Que me fez suar em bicas, aprendendo a andar de bicicleta num calor literalmente equatorial.
Que dançava selvagelmente comigo, dois malucos rodopiando na sala ao som dos Titãs.
Com quem dividi aventuras verdadeiras e inventadas.
Que me ensinou tanta coisa (um clichê que, neste caso, é apenas a verdade).
Dona de uma risada cujo som sempre me faz sorrir.
Cujo talento foi reconhecido pelo Presidente dos Estados Unidos!
Com uma inteligência e curiosidade que não param de me surpreender.
Que me deu momentos absolutamente inesquecíveis (uma falsa escalada, meu melhor mergulho noturno, um piquenique na varanda, um bonequinho de pano, um fim de semana em Paraty). Quem acharia que uma longa escala no aeroporto de Bogotá podia ser tão divertida?

Há exatos dezessete anos nascia a responsável pela maior parte da minha alegria. Amo você, Marina.



O silêncio é de ouro

Comemorando cada pequeno avanço...

Não tenho nenhuma esperança de que Dilma Rousseff fará um bom governo, mas não precisar saber a opinião do presidente sobre a eleição do craque da FIFA, a ressurreição do Totó ou a novela (esta, sim!) da volta do Ronaldinho Gaúcho é simplesmente delicioso.

Friday, January 7, 2011

Trilogia Feminina (1) - Brigitte


Muito raramente, escrevo umas estórias curtas. De vez em quando vou postar uma aqui. Segue a primeira. Esta é de uma série de três estórias batizadas com nome de mulher (minha Trilogia Feminina).

BRIGITTE
Ela o olhou longamente, e nos seus olhos grandes e negros ele podia ver toda a ternura do mundo. Ele sabia que ela o amava, e ele a amava também. Estavam ambos no sofá. Ele, sentado, ela deitada com a cabeça no colo dele. Ele a acariciava distraidamente, deixando os dedos correrem entre os pelos da sua nuca. A televisão estava ligada, mas nenhum dos dois prestava atenção ao que estava passando. Ambos estavam em silêncio. Ele pensava na mulher que ambos amavam e que estava para chegar da rua, a qualquer momento. Fôra por desejo da mulher ausente que os três viviam juntos hoje. Não é possível dizer que nunca houve ciúme algum entre eles, mas de modo geral, viviam em paz, e o amor que todos nutriam pelos outros fazia funcionar bem o arranjo que tinham há três anos.
A mulher que estava para chegar (Paula era seu nome) tinha uma loja de roupas. Seu cabelo tingido de azul e a maneira com que Paula se vestia sugeriam que as peças que vendia seriam pouco convencionais e quem visitasse sua loja não teria frustrada essa expectativa. Ela fechava a loja às sete da noite e já deveria estar quase chegando em casa.
Ele baixou o volume da televisão, com o controle remoto, mas não a desligou. Ajeitou-se com cuidado, porque suspeitava que ela tivesse adormecido no seu colo. Não achou nada que o interessasse em nenhum dos canais, embora fossem dezenas deles. Incrível como é possível produzir tanta coisa enfadonha em tantos formatos e estilos diferentes. Ele era publicitário e produzia comerciais para a televisão. Ainda assim, a TV era mais um hábito que uma paixão. Gostava de tê-la ligada por companhia, ainda que estivesse lendo ou navegando na internet. Na verdade, pegaria seu livro neste momento, se isso não o obrigasse a mover suas pernas e acordar a dona dos doces olhos negros que o fitavam minutos atrás.
Pensou ter ouvido um barulho vindo da porta, ao mesmo tempo em que ela levantou a cabeça do seu colo. Definitivamente, era o barulho da chave na fechadura. Brigitte pulou do sofá e correu latindo para a porta enquanto Paula entrava em casa.

Vida mais ou menos...


Já fui mais engraçado do que sou hoje.
Já fui mais feliz.
Já fui mais alto-astral.

Mas também já fui menos.

Mailson e Marina

Estou lendo a biografia do Maílson da Nóbrega. Muito interessante. É a estória de um menino pobre, de uma cidade pequena da Paraíba que foge do destino que já estava traçado para ele, através do estudo. Bom aluno, passa no concurso para o Banco do Brasil. Continua estudando e subindo na hierarquia do banco até se tornar Ministro da Fazenda.
Marina Silva é um caso ainda mais espetacular de resgate pela educação: analfabeta até a adolescência, empregada doméstica, correu atrás do tempo perdido, estudando com grande esforço. Formou-se em História e é hoje uma figura pública reconhecida no mundo.
Curioso que um país que tem figuras públicas como estas endeuse um presidente que faz, seguidamente, a apologia da falta de estudo.