Nos filmes da série “Mad Max”, Mel Gibson vaga por um mundo pós-apocalíptico. As estradas são perigosas e boa parte da humanidade se encastela em pequenas comunidades muradas, apavorada com os bárbaros que aterrorizam as estradas. As condições de vida são precárias e praticamente todos os confortos que temos hoje desapareceram. Em Waterworld, de 1995, Kevin Costner vive numa terra também devastada por uma hecatombe. Desta vez, as calotas polares derreteram e a maior parte da terra está coberta de água. Novamente, todos os confortos modernos desapareceram e a humanidade regrediu alguns séculos, sobrevivendo a duras penas enquanto é aterrorizada por bandos que voltaram à barbárie. Dois anos depois, o mesmo Kevin Costner voltaria a ser a esperança de um mundo semi-destruído por um apocalipse nuclear em ”O Carteiro” (The Postman). Mais uma vez, as pessoas de bem vivem em cidadelas, tentando reconstruir um mínimo de conforto, enquanto, do lado de fora dos muros, bárbaros controlam os caminhos. Em “O Livro de Eli” (The Book of Eli) de 2010, Denzel Washington cruza uma América pós-apocalíptica, mais uma vez atormentada por malfeitores, enquanto protege um livro que é a última esperança de reconstruir a civilização perdida. “Eu Sou a Lenda” (I am Legend), de 2007, repete basicamente a mesma história, de um modo um pouco mais metafórico. Mais uma vez, a civilização como a conhecemos foi destruída, só que os bárbaros que ameaçam Will Smith quando ele não está trancado em casa, são pessoas que uma praga transformou em monstros assassinos. No fim do filme descobrimos que uns poucos sobreviventes tentam reconstruir a civilização a partir de uma fortaleza onde vivem, em Vermont.
É curioso que tantos filmes de ficção científica contem a estória de uma humanidade que regride a um estágio anterior de civilização. Até certo ponto, a idéia toda é contra-intuitiva. Temos uma noção de “progresso” e sua inevitabilidade que é confirmada por quase tudo que estudamos em História na escola. A humanidade “anda para a frente”: os níveis de conforto e bem estar estão continuamente (ainda que, as vezes, lentamente) aumentando e vivemos hoje materialmente melhor que nossos avós viveram (e eles podem dizer o mesmo em relação aos avós deles). Claro que a poluição, os engarrafamentos, o risco de câncer de pele e a escravidão do celular podem nos fazer questionar até onde o progresso nos faz realmente mais felizes, mas não é disso que se trata aqui. Que extrair um dente com anestesia é melhor que sem, acho que ninguém contesta... A marcha inexorável para a frente que observamos na nossa existência e na de nossos pais e avós é difícil de conciliar com essa obsessão da ficção científica por um mundo que “andou para trás”.
Em 2005 eu fiz uma viagem de carro pelo interior da Inglaterra com Kátia e Marina. Saímos de Londres para o norte, fomos até Edinburgo, na Escócia, e voltamos pelo litoral leste. No caminho, passamos pelas ruínas da Muralha de Adriano, um ponto turístico bastante conhecido. Todo mundo sabe que os romanos, partindo do centro da Itália, construíram um Império que se estendeu para leste até o Oriente Médio e para oeste até a Península Ibérica. Invadiram a Inglaterra e dominaram sua metade inferior (Londres é uma cidade romana). Cansado de lutar com os bárbaros do norte (os ancestrais dos atuais escoceses), o imperador Adriano construiu uma muralha que protegia a fronteira norte do império.
Não sobrou tanta coisa assim da muralha (muitas pedras foram retiradas quando fizeram o cercamento das terras para delimitar o pasto das ovelhas, que deu origem àqueles lindos murinhos de pedra empilhada que se vêem por toda a Inglaterra). Ainda assim, o lugar vale a visita. O ponto turístico, propriamente dito, é o lugar onde um dia existiu uma base militar para a guarnição que guardava a muralha. Diagramas pintandos em placas de acrílico mostram como eram os alojamentos, os banheiros, os arsenais, as torres de vigia. Apesar de instalações militares não serem, nem hoje em dia, paradigmas do conforto, as construções tinham muitas das amenidades da arquitetura romana: os alojamentos tinham calefação (sob o piso de madeira, dutos de pedra conduziam o ar quente produzido numa fornalha anexa) e os banheiros tinham água corrente e esgoto (um riacho foi desviado para fornecer água para o banho e correr sob o banheiro, levando embora os dejetos). Estradas calçadas com pedra permitiam os carros de transporte chegarem ao quartel mesmo na estação de chuvas. As ordens superiores chegavam ao comandante da guarnição pelo correio regular. Um comandante romano sabia ler, é claro, e a escrita, as estradas e os correios permitiram que um Império imenso fosse controlado a partir de Roma, a uma distância percorrida então em várias semanas de viagem.
Um soldado romano tinha uma vida frugal, mas, no auge do Império, um romano rico vivia bem. O bom desenho arquitetônico fazia com que sua casa fosse fresca no verão e a calefação a aquecia no inverno. O aqueduto levava água à cidade e a rede urbana a levava até sua casa. Ele podia se dar ao luxo de banhos de banheira! O comércio com as colônias, os portos, as redes de estradas seguras levavam iguarias dos confins do império para a sua mesa. A moeda era usada em toda a parte, e permitia a ele adquirir todos os inúmeros produtos e serviços, disponíveis numa cidade romana, a uma curta caminhada de sua casa.
Nesta mesma viagem, nós visitamos muitos castelos medievais, construídos bem depois das Muralhas de Adriano. Nenhum tinha canalização de esgoto. Nenhum tinha água corrente. Nenhum tinha aquecimento. O rico e poderoso senhor feudal que vivia nesse castelo extremamente desconfortável era analfabeto (Carlos Magno, rei da França, era analfabeto!). Ele comia muito mal. Quase não havia comércio para além dos muros. Todos todos os caminhos (não dava mais para chamá-los mais de estradas) eram perigosíssimos e ele tinha de se contentar com o que era produzido no seu feudo. Pão, nabo, couve, carne de caça, não muito mais que isso. Sua casa era fria e malcheirosa. Ele vivia isolado do resto do mundo. Não havia mais correio. Não havia mais jornal. Não haviam mais trabalho assalariado. A ameaça dos bárbaros o obrigava a viver cercado por muralhas. Em comparação ao rico romano, o rico medieval vivia num estágio muito inferior de civilização.
O contraste das ruinas romanas com os castelos medievais me deu uma pista do porque tantos filmes falam do fim da civilização e da volta à barbárie: porque a humanidade já viveu esta experiência, uma vez. O fim do Império Romano e a regressão do modo de viver aos padrões da Alta Idade Média são uma experiência bem parecida com a que vemos nos filmes de ficção científica pós-apocalípticos. Roma era a civilização. A Alta Idade Média é o mundo dos últimos filmes de Mad Max.
Jung forjou o conceito de “inconsciente coletivo”: uma camada de inconsciente que não vem da experiência pessoal, mas é herdada da humanidade. É claro que Jung nunca disse isso que vou dizer, mas esse fascínio pelo tema da regressão à barbárie, demonstrada pelo sucesso dos filmes pós-apocalípticos parece uma manifestação do inconsciente coletivo. A Humanidade ficou tão traumatizada com a experiência do “fim da civilização” que nem os muitos séculos de progresso quase ininterrupto que o seguiram nos fizeram superar o choque.
À todas as pessoas de bem que vivem apavoradas nos medonhos mundos de Mad Max, do Carteiro ou de Eli, uma palavra de consolo: não será assim para sempre. Um dia, voltarão a existir livros. Um dia, as estradas serão seguras de novo. Um dia, haverá lei, novamente. E seus descendentes reclamarão da poluição e do engarrafamento...
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